“É uma coleção de falta de cidadania”, diz a primeira deputada tetraplégica do Brasil



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16/12/2013 | TRANSPORTE DE PASSAGEIROS


Mara Gabrilli fala à Agência CNT de Notícias sobre a realidade brasileira para pessoas com deficiência.

Foto: Júlio Fernandes/Agência Full Time“É uma coleção de falta de cidadania”, diz a primeira deputada tetraplégica do Brasil
Mara Gabrilli, 45 anos, é publicitária e psicóloga. Em 1994, ela sofreu um acidente de carro, num domingo à noite, quando saía de Paraty, no Rio de Janeiro, e voltava para São Paulo. Seu então namorado conduzia uma Range Rover e o seu melhor amigo ia no banco de trás. Mara revela que seu namorado havia bebido um pouco e cochilou antes de pegar a estrada. Na Serra de Taubaté (SP), ele perdeu o controle do veículo, que capotou diversas vezes e despencou 15 metros. O condutor não sofreu nada. Seu amigo precisou fazer enxerto de pele no joelho. Mara quebrou o pescoço (lesão na terceira vértebra cervical) e ficou tetraplégica.

Mara atribui a causa do acidente à imprudência e à imperícia. O rapaz com quem ela namorava tinha pego o carro no dia anterior, portanto, não tinha completo conhecimento do veículo e nem do comportamento do automóvel, principalmente nas curvas da serra. “Eu acho que não estava com domínio total [do carro]. Ele fez a curva maior do que a curva era e ficou jogando para não cair e aí a gente caiu”, lembra. Ela recorda que esperou por socorro por duas horas e meia. Nesse intervalo, Mara impediu que qualquer pessoa a retirasse do carro, pois, como ela mesma diz, o “senso de autopreservação e de sobrevivência” era muito forte. Apesar da dor no pescoço, ela ainda não havia se dado conta que havia ficado paralisada. A sensação é de que estava presa nas ferragens do carro.

A política entrou na sua vida muito antes de ela mesma perceber. Em 1997, ela fundou o Instituto Mara Gabrilli, Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) que apóia atletas com deficiência, fomenta pesquisas científicas e projetos culturais. E, como presidente de uma organização, Mara não dava mais conta de atender às demandas que chegavam. Foi quando se candidatou a vereadora de São Paulo (2007-2010) e, posteriormente, a deputada federal, cargo que ocupa atualmente. Em entrevista à Agência CNT de Notícias, Mara Gabrilli conta um pouco de sua história pessoal e profissional e avalia o transporte e as cidades brasileiras no que diz respeito às pessoas com deficiência.

Quando a política começou a fazer parte da sua vida?

Depois que eu quebrei o pescoço, comecei a vivenciar São Paulo e o Brasil pelo prisma de uma pessoa com deficiência. Eu comecei a ver o tamanho das dificuldades, da exclusão, da falta de informação. Eu sempre tive recursos e possibilidades de buscar tudo isso com facilidade. Pude perceber o quanto essa oportunidade pode trazer qualidade de vida para uma pessoa, e o quanto a falta dessa oportunidade pode fazer com que a pessoa viva numa condição que eu não classificaria como uma condição humana, mas de falta de dignidade mesmo.

[Como presidente de uma organização], eu me sentia limitada porque era demanda de calçada, de saúde, de transporte. Como é que eu ia conseguir melhorar tudo isso para as pessoas? Foi quando me deu vontade de, pela primeira vez, mudar a cidade mesmo. Aí eu me candidatei para vereadora [em SP]. Pra te falar a verdade, eu não sabia que aquilo que eu fazia era política. E eu fui vendo que eu era necessária, que o meu trabalho realmente fazia diferença.

Quando eu fui eleita vereadora, eu chegava e via, às vezes, uma fila de gente na porta do meu gabinete. E tinha anão, cego, surdo, cadeirante, muleta, idoso. Eu quase chorava na porta de emoção, sabe? Sensação de você poder fazer alguma coisa [se emociona]. Eu continuo tendo essa sensação. Então, eu me deixo ser ferramenta para as pessoas. Eu estou deputada, não pretendo ser deputada o resto da vida, mas, já que estou, quero me disponibilizar.

Os acidentes de trânsito são a principal causa de pessoas com deficiência no país?

Sem dúvida. Muito por falta de educação no trânsito. Eu acho que por imprudência, irresponsabilidade, álcool, celular. As pessoas são folgadas. Há excesso de velocidade. Eu vejo as estradas no Brasil. Às vezes, é uma estrada super bacana e a velocidade permitida é muito baixa. Isso também eu acho perigoso. Você pega estradas na Europa, onde o índice de acidente é menor e as pessoas correm muito mais. Então, às vezes, eu acho que a gente ainda é destemperado, cheio de faltas e excessos. Mas eu também acho que as metrópoles andam muito neuróticas, muito loucas. E tem tanto trânsito que as pessoas enlouquecem, saem correndo. Há muito desequilíbrio.

E o Brasil está preparado para as pessoas com deficiência?

Nada preparado. Nossa legislação diz, pelo Decreto de Acessibilidade, que, até 2014, todo o sistema de transporte brasileiro tem que estar acessível. Mas eu vejo várias cidades que não têm um ônibus acessível. O Ministério dos Transportes acabou de fazer uma compra de 10 mil ônibus escolares sem acessibilidade. Se o governo esquece, quem vai lembrar? Você acredita que só 12% das escolas de ensino fundamental no Brasil têm acessibilidade? Como você quer empregar as pessoas na Lei de Cotas, como é que você quer que as pessoas tenham direito aos seus direitos, como é que você vai defender a igualdade de direitos se o cidadão não tem a possibilidade de estudar? É muito dura essa realidade. E, desses 12%, 80% estão na região Sudeste. Então, você pode imaginar o que acontece no resto do Brasil.

E em relação a transporte?

São Paulo, por exemplo, tem a maior frota municipal do mundo, 15 mil ônibus. Não que isso seja super legal. Se tivesse mais metrô, talvez a gente tivesse menos ônibus, menos trânsito e chegasse antes. Mas 70% estão acessíveis. Eu acho que pra uma cidade como São Paulo, a gente não pode chegar em 2014 sem ter 100%. A gente quer 100%. Eu não sei qual é o balanço geral do Brasil, mas eu acho que eu já vi algo em torno de 20% dos ônibus acessíveis. É muito pouco. Claro que a gente entende que tudo é um processo e que, no Brasil, os municípios não foram planejados para receber pessoas com deficiência. É uma cultura, infelizmente, ainda nova se colocando, mas eu acho que a gente tem que vislumbrar 100%. Por que um cadeirante tem que chegar ao ponto e, além de ter que esperar como tudo mundo, ele ainda tem que ficar esperando o ônibus acessível passar?

[Em relação aos elevadores dos ônibus em São Paulo], toda hora aparecia gente reclamando que a plataforma não funcionava e a gente foi averiguar. E qual não foi a surpresa? As plataformas não estavam quebradas! O motorista vem de uma situação do trânsito e... [No caso dos cadeirantes], demora de sete a 10 minutos [para embarcar]. Até entendo, [o motorista] olha o cadeirante no ponto e fica desesperado: “ai, meu Deus, agora vou parar pra esse cara entrar”. E, assim, é uma culpa do sistema mesmo. E, conclusão, os elevadores funcionavam.

E isso não é um pouco de falta de cidadania?
Não é pouco, é muito. É a barreira de atitude que inviabiliza o acesso. Você vai lá, investe em tecnologia para que se tenha acessibilidade e a barreira de atitude, o preconceito, a falta de informação de quem opera, do motorista, inviabilizam. É a mesma coisa. Você faz guia rebaixada por toda a cidade. Aí vai lá o motorista e para o carro em frente à guia rebaixada. Adiantou o que? E esse cara é o mesmo que joga uma lata de refrigerante no chão. É uma coleção de falta de cidadania. É toda uma falta de informação sistêmica mesmo, do todo. As pessoas não se sentem donas dos próprios espaços, do patrimônio, da cidade. E é aquele mesmo cara que vai lá e para na vaga de pessoa com deficiência quando ele não precisa. São todas as mesmas pessoas que fazem isso, é o mesmo perfil.

Então, ainda existem muito desrespeito e discriminação para com as pessoas com deficiência no país?

Muito. Falta de cultura em conviver porque, às vezes, a gente acha que o que não vê não existe. E, até muito pouco tempo atrás, as pessoas [com deficiência] pouco saíam de casa. Então, não eram vistas. Acho que hoje o brasileiro está ficando um pouco mais estratégico porque, quando você tem o estabelecimento fazendo acessibilidade, não é ter responsabilidade social, é uma visão de marketing. Você está abrindo o seu negócio para um nicho que consome e que vai entrar no seu estabelecimento. Agora, a gente precisa antes transformar pelo coração, porque se você simplesmente fizer uma rampa, você não ensina. Você ensina quando você transforma socialmente e a rampa vem por consequência. E isso eu acho que a gente precisa fazer em todos os âmbitos, seja no transporte, na saúde, na cultura, no esporte, no trabalho, na educação, no lazer, em todas essas dimensões.

O transporte é o meio que permitiria o acesso a isso tudo, não?

Claro. O transporte “sinergiza” todos os equipamentos. Imagine, numa cidade, que você faça um grande investimento de acessibilidade na educação, na saúde e no trabalho. Se você não fizer isso no transporte, as pessoas não vão. E o oposto também. Se você só investir em transporte, as pessoas não têm pra onde ir. Tem que rolar uma visão de que a pessoa com deficiência está exercendo cidadania em todas as dimensões. E o transporte, com certeza, é importantíssimo.

Por que até hoje o país não tem um Estatuto da Pessoa com Deficiência?

Eu acho que faz parte da história do Congresso as coisas demorarem, tramitarem. E os parlamentares que relataram o Estatuto até agora, eles fizeram audiências públicas, encontros regionais, ouviram daqui, ouviram dali. E, no meio da história, o que aconteceu? A Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência no mundo inteiro. E uma convenção que durou praticamente quatro anos. Da última reunião, resultou um documento que o Brasil e as duas Casas [Câmara e Senado] daqui ratificaram. E esse documento passou a ter força de norma constitucional. Então, em 2008, quando o Congresso ratificou a Convenção, tudo mudou. O Estatuto passou a estar defasado, segundo a Convenção.

Eu cheguei à Casa com mais dois parlamentares cadeirantes e a gente queria fazer alguma coisa porque o documento já estava pronto para ser votado, mas o conteúdo dele precisava de um upgrade, precisava se fazer uma releitura à luz da Convenção. E aí a gente achou que fazer isso só com parlamentares não seria tão democrático quanto chamar especialistas e juristas para fazerem essa leitura. Então, a gente conseguiu fazer isso por meio da Secretaria de Direitos Humanos. E disso surgiu uma sugestão de documento. E é esse documento que veio parar na minha mão para relatar. Então, agora eu vou fazer de novo essas audiências só que, ao invés de eu fazer as audiências, eu estou escalando os parlamentares para fazerem isso. Então, eles vão pilotar as audiências regionais. E a gente pegou uma ferramenta da própria Câmara, que é o e-democracia, para as pessoas trazerem as suas contribuições. Pela primeira vez, tem um projeto no e-democracia traduzido em libras, por exemplo. E, com certeza, vamos votar este ano.

O que, na verdade, vai ser o Estatuto?

Eu acho que o Estatuto vai ser um marco legal para as pessoas com deficiência. Não é uma tutela. É um documento de garantia de direitos, de defesa de igualdade, de garantia de que as pessoas têm direito a ter direitos. Eu acho que é um documento que vai facilitar a vida da pessoa com deficiência. Se a gente for mais a fundo ainda, ele é quase que um documento de direito à felicidade.

Que novidades, por exemplo, o Estatuto vai trazer para as pessoas com deficiência?

Ele traz propostas de mudanças na Lei de Cotas, no trabalho, na saúde, no Código de Processo Civil (CPC). Por exemplo, as pessoas com deficiência intelectual hoje têm muita dificuldade pra tudo, inclusive pra casar. Agora quem é que pode dizer que uma pessoa com deficiência intelectual tem menos possibilidade de achar um bom parceiro do que uma pessoa que não tem a deficiência intelectual? De onde vem essa arrogância? E é uma transformação muito grande porque ela somente pede para que haja uma tutela dessas pessoas, quando necessário, da questão do patrimônio, mas elas podem casar, podem tirar Carta [Carteira Nacional de Habilitação (CNH)]. Se o cara tem uma deficiência intelectual, ele passa no psicotécnico, passa em todos os exames, ele não pode tirar uma Carta porque ele tem deficiência intelectual? É muito antigo isso, é subestimar demais a capacidade das pessoas. E tem muitas outras coisas. Vamos torcer porque, além do relatório, a gente precisa conseguir aprovar e negociar com todos esses predinhos [ministérios] para que seja sancionado [o Estatuto], porque não adianta nada fazer e não negociar e depois chegar lá e a presidente vetar.

E a questão dos carros adaptados? Como está a indústria automobilística?

Eu já trabalhei muito por isso. Eu fui à reunião técnica que pauta o Confaz [Conselho Nacional de Política Fazendária], que é onde eles definem determinadas situações [como os imposto]. Então, por exemplo, a pessoa com deficiência, não-condutora [quando o condutor é uma pessoa sem deficiência, mas o veículo é destinado ao transporte de um deficiente] poderia ter isenção de ICMS. E eu fui falar nessa reunião. Por que as pessoas que têm deficiência que não permitem a condução, caso de tetraplegia como a minha, além de tudo tem que pagar o motorista ou ter alguém? Então, no caso, ela tem um custo de vida ainda mais alto.

E, desde janeiro, começou a vigorar essa nova resolução que o não-condutor agora tem isenção de ICMS. E agora, outra tentativa que a gente está fazendo, é subir o teto do carro adaptado para R$ 77 mil, porque, daqui a pouco, as montadoras estão fazendo os carros adaptados e não vai ter mais carro adaptado com o teto que a legislação permite. Então, eu, pessoalmente, acho que isso devia ser liberado. O cara quer comprar um carro, que ele compre o carro que ele queira, como é nos Estados Unidos. Aqui é limitado até R$ 70 mil.

Como se situa o Brasil perante os outros países em relação ao respeito às pessoas com deficiência?

Dependendo do que se comparar, está lá embaixo. Mas sabia que tem muito país pior? Londres, pra mim, é a cidade mais acessível do mundo. Além de as calçadas serem acessíveis, todo o transporte é acessível, 100% dos táxis são acessíveis. Tem uma cultura de acessibilidade bastante forte. Você vai a Miami e anda horas na calçada sem nem passar pela rampa porque eles fazem lombo-faixa para a pessoa ter essa comodidade, não ter que ficar descendo e subindo, quem sobe e desce é o carro. Acho que tem cidades que privilegiam o pedestre, o que não acontece nas cidades brasileiras. Começa por essa [Brasília]. Eu adoro andar a pé, no caso com a cadeira. Ali, no Ministério da Saúde, eu sempre vou a pé. E eu nunca sei se vou chegar viva porque eu tenho que andar na rua e na contramão. Se eu for na mão certa, não tem como. Pelo menos vai de cara, você olha, dá pra gritar, né? [risos]. Mas não tem calçada. Então, não é uma cidade que privilegia o pedestre. E acho que a maioria das cidades brasileiras funciona dessa forma.

O que diria para as pessoas que se descobriram com deficiência recentemente?

Eu diria que [emociona-se], no princípio, é difícil, mas ela tem que conseguir entender que quem tem deficiência não é ela. São as cidades, as cidades que não foram preparadas para receber todo tipo de pessoa, porque quando a gente consegue equipar os lugares, colocar dispositivos, ferramentas, recursos, transformar as pessoas, eliminar as barreiras de atitude, você esquece a deficiência.

Eu vejo por mim, no meu dia a dia. Teoricamente, eu tenho uma deficiência bastante severa. Mas eu consigo fazer as coisas que eu quero, porque eu tenho estrutura, porque eu vou. Se eu chego num lugar e tem uma escada, eu peço para alguém me carregar. Como eu vou fazendo [as coisas], eu não me lembro [da deficiência]. Às vezes, quando eu estou num lugar e passo em frente a um espelho, aí eu “opa!” [risos]. Eu não penso nisso.

É claro, você tem o primeiro momento que você fica com a saúde abalada, mas depois disso, eu acho que é cuidar do seu corpo, ainda mais no caso de uma lesão medular. Você não consegue cuidar da alma sem cuidar do corpo. E tem que cuidar para você ter mais momentos de bem estar para você conseguir fazer seu trabalho, seu estudo, seu passeio, seu sei lá o que for. Mas precisa ter isso em mente: que não é culpa sua, que é a cidade que não está preparada. E se você estiver num local preparado, você consegue ir e vir e fazer tudo. É simplesmente uma condição diferente.
 
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Ana Rita Gondim
Agência CNT de Notícias

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